O HOMEM DA CASA
- Pote de Conserva
- 14 de out. de 2016
- 6 min de leitura

O homem chega em casa cedo, pouco antes das seis da tarde. Esse não é seu costume, mas fora dispensado do trabalho antes do normal, culpa de uma falha no rolamento nas máquinas da fábrica. Ele nem achou ruim. É uma quarta-feira, dia de futebol! Nada nem ninguém poderia deixá-lo aborrecido. Ou quase. A esposa vem, resmungando desde a cozinha. "Tem que trocar a lâmpada do quintal!". Ele nem responde, já estava combinado que assim que comprasse uma lâmpada, ele trocaria. Mas não tivera tempo ainda. A filha vem, implicando com o irmão. "Pai, manda ele parar de mexer nas minhas coisas!". Já havia mandado, várias vezes até. Mas o menino é apenas uma criança, nem falar sabe ainda. A sogra vem, criticando o homem. "Você é um irresponsável, sabia? Vá trocar a lâmpada e educar seu filho direito!". Ele sequer sabia o motivo da sogra morar com eles, nunca a havia convidado. Ele, porém, permanece sereno. Apenas ouve, o que já ouviu várias e várias vezes. "Vou trocar a lâmpada", ele pensa. "Vou comprar um brinquedo pro meu filho, pra ele parar de mexer nas coisas da mocinha". O homem tenta dormir, cochilar, entrar em coma, morrer por alguns minutos. Está cansado. Chegara mais cedo, mas ainda assim havia trabalhado muito. Ele é o único na casa que trabalha, não seria possível que tivesse sequer um descanso? "A comida está na mesa!", a esposa anuncia. A filha mais moça corre até a cozinha. A mulher passa rápido, também, com o filho mais novo nos braços. A sogra solta um resmungo e vai para a cozinha. "Talvez eu tenha um pouco de paz depois da janta", o homem pensa (ele é ótimo na arte de pensar, já fora também na arte de falar, mas hoje se priva de partilhar suas ideias, prefere observar a refletir). Vã esperança de paz. Sequer durante a janta a consegue. Depois da costumeira oração de graças pelo alimento, as perturbações retornam. É a filha contando fofocas, o filho espalhando a comida na mesa, a sogra criticando o jeito da esposa de cozinhar, a esposa a ignorando e todos o aborrecendo. "Será que ninguém nessa casa consegue respeitar a sagrada hora do alimento?". E a esposa parece compreender o olhar do marido, repreendendo sua filha e até sua mãe, tomando o talher da mão do bebê e tratando dele ela mesma. O homem come rápido, levanta-se da mesa e lava seu prato. Olhando para o relógio, já são quase sete, o jogo, seja ele qual for, começa em pouco tempo. Dirige-se a sala. Ao sentar na poltrona, solta um suspiro, está cheio de esperança. "Quem sabe agora não é a hora?". Liga a TV e os comentaristas já fazem suas velhas e sem graça piadas. Até isso o aborrece. O jogo começa. É um bom jogo, com bons times e pessoas que ele quer evitar por noventa minutos, sua família, longe. "Paz?". Nada disso. Lá vem a filha, "Pai, preciso de dinheiro". Abre a carteira, "Pegue esses dez". Lá vem a esposa, "A conta de luz já venceu". Olha pra ela, " Amanhã eu vou pagar, ainda não recebi meu pagamento" Lá vem a sogra, "Eu queria tanto ver a novela". Ele aperta os olhos. "Esperei por esse jogo o campeonato inteiro". O bebê está chorando, o telefone está tocando, a chaleira apitando e estresse subindo a cabeça do homem. Um gol, do time rival. "Droga!", ele já está para explodir. A filha começa a gritar, o cachorro do vizinho começa a latir, a sogra no sofá a roncar e a esposa a cantar para o filho. "Por que fazem isso na sala?!". Ele começa a explodir. Fim do primeiro tempo. Pede a esposa para levar o bebê para o quarto. Ela vai, um já foi. Briga com a filha, gritou por causa de uma baratinha! Chama a sogra para dormir em outro lugar. "Mas eu não quero dormir!". O homem se estressa. Não aguenta mais isso. Corre para o quarto, pega um casaco. Sai de casa, batendo a porta atrás de si. "Vou ver o jogo em outro lugar", diz para ninguém ouvir. E andando pelas ruas do subúrbio onde mora, o homem vê um bar, no canal do jogo. "Está cheio demais", resmunga. Continua andando, mas a cada esquina e a cada bar ele se irrita com alguma coisa. Está cheio demais, é feio demais, tem mulheres demais (e destas ele está cheio por uma noite), é caro demais. Nunca é suficiente o bastante. São dez minutos andando. Dez minutos de intervalo passados. O segundo tempo está quase para começar e o homem, já sem esperanças, não encontra um bar. Passam-se as ruas, correm ao seu lado os carros, gritam dentro dos carros as garotas e os namorados. "Acho que vou voltar para casa", ele pensa, mas desiste. "Mulheres demais por hoje. Eu preciso descansar." Sem esperanças, o homem conforma-se de que não há lugar onde possa ver o tal jogo de futebol. Já perde quase metade do segundo tempo, seria inútil pegar a partida pelo meio. E sem emoção alguma, claro. O homem resolve então apenas descansar em pensamentos. Ele anda pelas ruas alaranjadas por causa dos postes de luz, lembra da sua infância, da sua mãe preparando leite para ele e acariciando seus cabelos. Lembra do primeiro amor da sua vida e fica feliz ao se lembrar, também, que ela se tornou sua esposa (mesmo que esta, vez ou outra, o cause extrema chateação). Olha as ruas, os carros, os muros. Muros pichados, frases tortas e porcas. Mensagens de crianças inocentes, descrentes, intolerantes. Criaturas de um governo que ele nunca aprovou. Nem aprova. Frases de mulheres, ele tem certeza. Frases que mostram o quão revoltadas as princesas estão por não terem o mesmo que os homens. Frases que mostram sua indignação por não serem o que queriam ser e pelo mundo e pelas coisas não saírem do jeito que elas queriam que saíssem. "Eu sou um homem. Sou trabalhador. Eu cuido da minha família, da minha esposa, dos meus filhos e até da minha sogra. Eu sustento a minha casa. Me ensinaram a ser assim: 'Menino, cresce, trabalha, cuida da sua mulher, trata sua filha como rainha e ensina seu filho a fazer a mesma coisa!'. Minha mãe me criou, meu pai nos sustentou e hoje faço a mesma coisa. Não vou deixar minha filha usar roupa curta, aí sou retrógrado. Não vou deixar minha filha sair tarde nem voltar tarde, aí sou machista. Não vou obrigar minha mulher a trabalhar, não quero que ela faça, eu dou conta sozinho. Mas qual o problema de ela cuidar das crianças e de mim? Eu protejo, eu ralo, eu banco e eu pago. Eu faço isso, eu amo, eu macho." E o homem dá meia volta, preso em devaneios, cheio de perguntas que não são só dele. São perguntas de vários outros, pais, irmãos, maridos. São perguntas de várias outras, mães, irmãs, esposas. São perguntas de pessoas que não veem mal em homem ser homem e mulher ser mulher. Perguntas de quem se importa, de quem preza pela ordem. "Não é superioridade", o homem pensa, "é proteção. Proteção pra minha mulher, para minha filha, para minha futura nora e para minha futura neta." De que reclamam as mocinhas afinal? Elas não precisam pegar em enxada, são privilegiadas pela fraqueza física. Não precisam abandonar suas amigas quando se casam. Não precisam levantar-se no ônibus quando um homem chega. Não precisam deixar alguém mudar o canal da TV quando estão vendo seu programa favorito. Elas podem ir a salões de beleza. Podem pintar as unhas, arrumar os cabelos, podem gerar filhos, podem tê-los sempre perto. As mocinhas não são acusadas injustamente de estupro. As mocinhas não são as maiores vítimas de assassinato. As mocinhas não são as maiores suicidas. As mocinhas não são maioria em cargos de risco. As mocinhas são mocinhas, mas querem ser machinhos. Querem ser mortas. Querem ser agredidas, chamadas de maricas, pressionadas a trabalhar desde cedo, pressionadas a proteger os inocentes. As mocinhas, que são só mocinhas, infelizmente, não sabem o que reivindicam. E, assim, o homem voltou para casa. Com dor no peito, cansaço físico. Dor na alma. "O que foi que fizemos? Onde erramos para que nossas mocinhas se revoltassem tanto contra nós?". O homem, que só queria assistir a uma simples partida de futebol, numa quarta feira, cansado do trabalho, volta para casa com um novo velho modo de pensar; que mocinhas são mocinhas e que delas ele tem que cuidar. Às mocinhas: esse homem é seu pai, seu avô, seu tio conservador. Esse homem é aquele padre que já está cansado de te avisar de riscos. Esse homem é o primo pastor que não quer que você se machuque. Esse homem sou eu, uma mulher, uma mocinha. Uma mocinha, como você, preocupada com as demais. Esse homem são as pessoas que você chama de retrógradas, atrasadas, velhas, mente fechada. Esse homem, somos nós. E nós, mocinhas e machinhos, somos por vocês, mesmo que não sejam por nós.
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