500 Anos de Reforma
- Pote de Conserva
- 31 de out. de 2017
- 6 min de leitura

“Espremi-me entre a multidão aglomerada em frente a igreja, tentando alcançar e ver com meus próprios olhos o que quer que estivesse causando tanto alvoroço. Eu apenas ouvia os mais velhos discutindo uns com os outros, mas não os entendia. Falavam sobre “subversão”, “heresia”, “papel pregado”, “Padre Martin”, nada muito claro, apenas o burburinho. Foi quando finalmente consegui passar pela última fila de pessoas e vi. Não entendi absolutamente nada do que estava escrito no comprido papel pregado na porta da Igreja do Castelo. Acho que nem poderia, afinal não sabia ler. Mas eu sentia. Havia algo nas letras e nos símbolos, algo naquelas palavras que me dava a sensação de que tudo estava prestes a mudar. Fosse o que fosse, a caligrafia denotava mudança, transformação. Então, em silêncio, eu rezei por Padre Martin, que Deus o abençoasse.”
Há 500 anos era acesa a centelha do que seria a maior revolução da história do Cristianismo. Foi em 31 de outubro de 1517, quando o monge agostiniano e doutor em teologia, Martin Luther – Martinho Lutero, em português – pregou (literalmente, com pregos e martelo) suas 95 teses contra a venda de indulgências (declarações de perdão concedidas pela Igreja) e outros abusos de autoridade. As teses não eram para soar como afronta à Igreja Católica de Roma, regida sob o papado de Leão X, mas sim como pontos a serem avaliados. Na concepção de Martinho, era um absurdo que a Igreja vendesse o perdão, que deveria vir de graça e em virtude do arrependimento genuíno. Não só isto, mas que cobrasse dos pobres para ver ‘relíquias’ e ‘objetos abençoados’. Como poderia que a Igreja, o corpo de Cristo, se institucionalizasse e ditasse o que era e o que não era verdade bíblica, assumindo papel e responsabilidade de Deus?
Graças a imprensa (existente na Europa desde o século XV), as 95 teses de Lutero foram amplamente reproduzidas, alcançando lugares muito distantes de Wittenberg, onde exercia suas funções de padre na Igreja e de professor universitário. A repercussão chegou ao Vaticano e, acusado de apostasia, Martinho foi convocado à Roma para julgamento. Felizmente, Frederico, o Sábio, príncipe-eleitor da Saxônia e protetor de Lutero, intercedeu pelo doutor e conseguiu que o julgamento fosse realizado em solo alemão. Mesmo ameaçado pelo Papa de excomunhão, permaneceu firme, não aceitando negar suas teses, afirmando que não poderia negá-las a menos que fosse convencido pela própria Palavra de Deus.

A Reforma não representou mudanças apenas para a religião e para a História da Igreja, de forma geral, mas para várias áreas como direito, política, educação e arte. Alguns historiadores afirmam que não é possível imaginar a Idade Moderna sem o advento da Reforma Protestante.
No que diz respeito à educação, Lutero foi enfático: "Cada vez que se gastar um florim com armamentos, devemos gastar cem florins com a educação". Num contexto em que somente crianças ricas ou que possuíam vocação religiosa tinha acesso à educação, o ex-monge propôs que era um direito de todos – incluindo pobres e meninas. Esta proposta, com o tempo, tornou-se parte da cultura do Sacro Império Germânico (hoje, Alemanha), e seus reflexos estão no Brasil. A região sul abriga, desde o início do século XIX, muitas famílias alemãs. Não coincidentemente, possui, também, a maior taxa de alfabetização do país. Este fato se sustenta e é fácil de se associar a Reforma não só religiosa, como também cultural, quando tais imigrantes alemães, chegando ao território brasileiro, abriam escolas de ensino básico para meninos e meninas.
Politicamente, a Reforma Protestante foi de grande valia para preceitos da própria Revolução Francesa, embora a mesma não esteja diretamente ligada a questões religiosas. Foi com os reformadores que cresceram na Europa os conceitos de igualdade e de individualidade. O primeiro, baseado em crenças judaico-cristãs de que todos somos iguais perante Deus, criadas por Ele. Já o segundo, que pregava que os protestantes não tinham nenhum intérprete oficial das Escrituras, contribuindo para o desenvolvimento do espírito capitalista, algo sobre qual Max Weber escreveria, em 1905, em seu livro "Ética Protestante e o Espírito Capitalista".
Com a Reforma, e em contraposição à definições gregas, o trabalho passou a ser visto como dignificante e parte do plano de Deus para os homens. Assim, trabalho e vocação (antes associada somente à religião) passaram a andar lado a lado. Surge então a palavra beruf , que traduzido para o português significa a junção literal de "trabalho" e "vocação". Para Calvino, "Deus chama a cada um para uma vocação particular cujo objetivo é a glorificação Dele mesmo". Isso permitiu uma forte mudança no que diz respeito ao trabalho, principalmente num contexto em que os filhos seguiam a profissão dos pais, mesmo que sem vocação. O protestantismo fez com que a aptidão também se tornasse um fator importante na escolha de uma profissão.
A arte também foi indiretamente afetada pela Reforma Protestante. Com o decaimento no número de fieis católicos, a Igreja entrou em cena no mundo das artes, buscando, através do Barroco, retomar as questões teocêntricas e religiosas, perdidas durante o Renascentismo. O Barroco evocava valores religiosos em contraposição aos racionais; luz versus trevas; sacro versus profano; céu versus inferno. A Igreja tentava, por meio de uma espécie de terror psicológico por vias artísticas, retomar o poder para si, tirando-o não das mãos dos protestantes, mas dos próprios indivíduos. Além disso, Lutero também escrevera diversos hinos, publicados e reproduzidos em livros, o que também favoreceu o espalhar de seus ideais pela Europa.

Não há como negar que a Reforma Protestante foi muito mais que um movimento religioso. Os reformadores não pregavam a separação da Igreja, a princípio, mas, como o próprio nome diz, reformar o catolicismo, buscando levá-lo de volta aos primórdios da fé cristã. Entretanto, os pontos principais enunciados pela Reforma, como as Solas (Sola Fide, Sola Gratia, Sola Scriptura, Solus Christus e Soli Deo Gloria), afastaram e levaram à divisão das religiões cristãs. A não aceitação da teologia reformada e a acusação de apostasia e heresia resultaram no que hoje é conhecido como Protestantismo, do qual surgiram os evangélicos.
Entretanto, se analisarmos mais friamente o que aconteceu com o movimento protestante 500 anos depois da Reforma, podemos dizer que Lutero, Melanchton, Calvino, Zwinglio e outros reformadores ficariam envergonhados. Depois de tanto sangue derramado, perseguições, carnificinas (como o Massacre da Noite de São Bartolomeu, na França dos Valois) e guerras, tudo contra o que os protestantes lutavam, pelo que muitos morreram, as heresias, indulgências e abusos tomaram lugar dentro da Igreja Protestante. Meio século após uma das maiores revoluções do Cristianismo está tudo como antes.
Como protestante, imagino meu papel nisso tudo. O que eu tenho feito para fazer a diferença? A Reforma foi uma revolução cultural e moral, não só na Igreja como em toda a sociedade europeia. Ela possibilitou uma mudança nos rumos da economia, ética e política daquele tempo e seus reflexos são vistos ainda hoje. Assim, o Protestantismo tem suas raízes na mudança e no chamado do Apóstolo Paulo aos cristãos de Roma, evidenciado em Romanos 12:2, "E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus". Ele não possui característica salvífica, mas baseia-se nos mandamentos Daquele que salva (Solus Christus!). A natureza da Reforma é de fazer a diferença em todas as esferas da sociedade, e isto não deveria ser perdido com o passar dos anos.
Em que pé está a Igreja Protestante no Brasil, com todos os seus ramos e denominações? Prostituiu-se e tornou-se aquilo que havia jurado destruir! Todos os dias um novo templo é aberto. Saqueadores e comerciantes da fé exploram os fieis alienados, humildes e sem instrução. "Se pagar três vezes o dízimo, a bênção será triplicada"; "O diabo vive nas panelas"; "Camisa ensanguentada do pastor cura os doentes"; "Caneta ungida, apenas R$ 100, 00"; "Água do rio Jordão, para curar". Mercenários, falsos profetas, hereges, apóstatas! O que estão fazendo com a nossa fé? O que estão fazendo com a Palavra de Deus? Como conseguem manipular as Escrituras ao seu bel-prazer, para pregar teologias anti-bíblicas?
E o que falar da política brasileira? Há 500 anos homens e mulheres cheios de fé e indignação acerca do escárnio que a Igreja Católica havia transformado o Cristianismo, modificaram todo um sistema de poder. Isso refletiu amplamente na cultura e na moral da época. Que diferença nós temos feito em nosso país? Que diferença nossa "fé transformadora e subversiva" tem feito?
É preciso uma nova reforma! Não para criar uma nova categoria religiosa, mas para simplesmente mudar e retomar os princípios da Reforma Protestante. Espalhar o amor de Deus e o sacrifício de Jesus Cristo, "pois não podemos deixar de falar do que temos visto e ouvido" (Atos 4:20). Reformemo-nos a nós mesmos, só assim causaremos impacto em toda a estrutura política, social e religiosa de nossa nação.
Que Deus nos abençoe, irmãos! Feliz 500 anos de Reforma, e que esta chama volte a queimar em nossos corações. Não nos amoldemos a este mundo, nem ao que os falsos profetas dizem ser a verdade. Busquemos em Deus e em Sua Palavra a revelação. Exerçamos o livre pensamento e voltemos ao Evangelho. Não soltem o martelo, Reforma continua!
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